sábado, 23 de maio de 2009

Rotas Literárias





A Bahia de Jorge Amado

Renata Bianco

Em meio às plantações amareladas de cacau da Fazenda Auricídia em Ferradas, interior da Bahia, nascia Jorge Amado. Naquele dia, 10 de agosto de 1912, João Amado de Faria e Eulália Leal Amado carregava nos braços aquele que viria a ser um dos maiores romancistas brasileiros. Jorge Amado de Ilhéus, Sergipe, Rio de Janeiro, Manaus, América, Europa. Jorge Amado do mundo. Mas antes de tudo, Jorge Amado da Bahia. É em Salvador, que


"Lívia olha o mar morto de águas de chumbo. Mar sem ondas, pesado, mar de óleo.
Onde estão os navios, os marinheiros e os náufragos?Mar morto de soluços, quedê as mulheres que não vêm chorar os maridos perdidos?Onde estão as crianças que morreram na noite do temporal?Onde está a vela do saveiro que o mar engoliu?E o corpo de Guma que boiava com longos cabelos morenos na água que era azul?Na água plúmbea e pesada do mar morto de óleo corre como uma assombração a luz de uma vela à procura de um afogado.É o mar que morreu, é o mar que está morto, que virou óleo, ficou parado, sem uma onda.Mar morto que não reflete as estrelas nas sua águas pesadas.Se a Lua vier, se a Lua vier com sua luz amarela, correrá por cima do mar morto e procurará como aquela vela o corpo de Guma, o de longos cabelos morenos, o que marchou pela estrada do mar para o caminho das Terras do Sem Fim, das costas da Arocá."
Jorge Amado escreveu Mar Morto, olhando para o mar de Gamboa de Cima, Salvador. Contou a triste história de uma criança criada no cais da Bahia, Guma, que apaixonou-se pela meiga Lívia. Nesta obra, a ação se desenrola principalmente na Cidade Baixa, na estreita faixa de terra entre o mar e a montanha, entre as vielas apertadas do comércio e os grandes espaços abertos do oceano Atlântico, onde vive Inaê, a mãe d'Água, senhora do mar, da vida e da morte de marinheiros e navegantes.
Foi também na Bahia, nas ladeiras do Pelourinho que Dona Flor se entregou aos encantados do malandro Vadinho.
A biografia de Jorge Amado mostra a inquietude que trazia na alma pelas inúmeras viagens que fez. Ainda menino, fugiu do colégio e viajou por dois meses até chegar em Itaporanga, Sergipe, na casa do avô. Essa seria apenas o inicio de uma série de viagens que ele faria. Porém, ter morado no Pelourinho, centro histórico de Salvador, Bahia, marcou definitivamente suas obras.
Mais de oitenta anos se passaram, e o cenário que inspirou Jorge Amado, continua o mesmo, claro que com algumas modificações que a modernização trouxe e refletiu não só na cidade como também nos moradores. O velho malandro, as prostitutas e homossexuais que habitavam as ladeiras hoje trazem um contexto diferente. A Bahia revolucionária de Jorge Amado não existe mais, porém o sincretismo de religiões ainda vive e respira em cada esquina onde ecoam os tambores do candomblé misturados aos gritos de súplicas das igrejas evangélicas e o silêncio dos católicos ajoelhados nas mais de 300 igrejas espalhadas pela cidade.
Este cenário religioso da Bahia serviu para retratar a luta de Antonio Balduíno pela integração do negro na sociedade brasileira. Jubiabá, é o primeiro romance do autor que traz elementos do candomblé, religião afro-brasileira que cultua os orixás, através da figura do pai-de-santo Jubiabá, guia espiritual de Antonio Balduíno. "Cidade religiosa, cidade colonial, cidade negra da Bahia. Igrejas suntuosas bordadas de ouro, casas de azulejos azuis e antigos, sobradões onde a miséria habita, ruas e ladeiras calçadas de pedras, fortes velhos, lugares históricos, e o cais, principalmente o cais, tudo pertence ao negro Antônio Balduíno. Só ele é dono da cidade porque só ele a conhece toda, sabe de todos os seus segredos, vagabundeou em todas as suas ruas, se meteu em quanto barulho, em quanto desastre aconteceu na sua cidade".

Segundo Myriam de Castro Lima Fraga, diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, a partir de Jubiabá, terceiro romance da fase urbana, publicado em 1935, começa a adensar-se a relação de Jorge Amado com a cidade do Salvador, “ou cidade da Bahia, como ele preferia chamá-la. Alargando os limites do território onde se movem os personagens, o cenário vai aos poucos se definindo, ganhando contornos, fazendo-se mais e mais presente na narrativa”, analisa.
Para Mirian, é difícil dizer qual obra de Jorge Amado é mais importante principalmente para um autor que escreveu não apenas romances, como também biografias e memórias. “Tratando apenas dos romances relacionados com a cidade do Salvador, vamos encontrar: O país do carnaval, Suor, Jubiabá, Mar Morto, Capitães da Areia, Os Pastores da Noite, Dona Flor e seus Dois Maridos, Tenda dos milagres, Tereza Batista Cansada de Guerra e o Sumiço da Santa”, enumera. “O mais característico na obra de Jorge Amado é sua fidelidade às fontes populares, onde vai buscar inspiração, a partir da observação e do conhecimento, para construir uma saga de grande realismo, embora envolta sempre num manto de fantasia, que faz o encanto e o sabor de suas narrativas”, descreve.
De acordo com Myrian Fraga, o primeiro romance publicado por Jorge Amado, em 1931, O País do Carnaval “põe em relevo o Largo do Pelourinho e seu entorno: o Tabuão, a Baixa dos Sapateiros e o Terreiro de Jesus, cercado de igrejas centenárias. Publicado em 1934, Suor repete o mesmo ambiente, num cenário limitado ao centro da cidade”, diz.
Ela ainda conta que um ano após a publicação de Mar Morto veio a público o livro Capitães da Areia, romance que teve um início de vida atribulado, “com a primeira edição apreendida e exemplares queimados em praça publica de Salvador por autoridades da ditadura do Estado Novo, o que não impediu que logo se tornasse um grande sucesso. Desde então, até hoje, as edições se sucedem atingindo a cifra espantosa de 98 edições e 16 traduções, sendo este o livro de Jorge Amado com maior número de exemplares vendidos”.
Depois desse livro, são publicados, sucessivamente, mais seis romances cuja ação se desenvolve na área urbana de Salvador: A Morte e a morte de Quincas Berro d'Água, que segundo a diretora da Fundação Casa de Jorge Amado na verdade não é considerado um romance, mas uma novela, Os Pastores da noite, Dona Flor e seus dois maridos, Tenda dos Milagres, Tereza Batista Cansada de Guerra e o Sumiço da Santa.
Para Myriam, dessas obras, a mais importante talvez seja Tenda dos Milagres, “embora Dona Flor seja a de maior sucesso, já que foi adaptada para cinema, teatro e televisão. Em Tenda dos Milagres, Jorge Amado retoma os temas anteriormente abordados em Jubiabá, traçando um painel mais aprofundado das relações inter-raciais na sociedade baiana. Talvez tenha sido também o romance preferido de Amado que confessou várias vezes que reconhecia no protagonista, Pedro Arcanjo, seu alter ego”, revela.
Já em Tereza Batista Cansada de Guerra, romance de mais de trezentas páginas, quase inteiramente dedicado à narrativa dos infortúnios da protagonista, a cidade de Salvador só será resgatada, já quase no final do romance quando, depois de percorrer meio mundo, Tereza Batista reencontra o grande amor de sua vida, Januário Gereba, na beira do cais da Baía de Todos os Santos.
O Sumiço da Santa é o último dos romances urbanos escritos por Jorge Amado. “São referidos temas gratos ao autor como: miscigenação, preconceito racial, sincretismo religioso; a memória do povo, suas histórias, suas criações, a tristeza e as alegrias do cotidiano de uma comunidade”, diz Myriam.
Ao perguntar para a diretora da Fundação quem foi o ser humano Jorge Amado, ela o define como uma pessoa que sempre foi generosa, “no mais amplo sentido, fiel às suas crenças e amizades, que não tinha medo de proclamar os seus afetos, mesmo que com isso pudesse contrariar opiniões e julgamentos. Incondicionalmente dedicado à literatura, aos amigos e à família, teve em sua mulher Zélia Gattai, com quem viveu uma intensa e duradoura história de amor, uma companheira constante e uma interlocutora permanente. Poucos escritores brasileiros tiveram uma vida tão plena de realizações, participando ativamente dos acontecimentos mundiais, que redesenharam o mapa da história no século vinte”.




OLHO PARA MATÉRIA – TRECHOS DE OBRAS

"Começou a subir a ladeira de S. Bento vagarosamente. Tomou por São Pedro, atravessou o Largo da Piedade, subiu o Rosário, agora estava nas Mercês". (Capitães da Areia)

"Pedro Bala enquanto sobe a ladeira da Montanha, vai pensando que não existe nada melhor no mundo que andar assim, ao azar, nas ruas da Bahia. Algumas destas ruas são asfaltadas, mas a grande, a imensa maioria é calçada de pedras negras. Moças se debruçam nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é uma costureira que romanticamente espera casar com noivo rico ou se é prostituta que o mira de um balcão velhíssimo, enfeitado apenas de flores. Entram mulheres de negros véus nas igrejas. O sol bate nas pedras ou no asfalto do calçamento, ilumina os telhados das casas. Na sacada de um sobradão, flores medram em pobres latas. São de diversas cores e o sol lhes dá seu diário alimento de luz.” (Capitães de Areia)

"Cidade religiosa, cidade colonial, cidade negra da Bahia. Igrejas suntuosas bordadas de ouro, casas de azulejos azuis e antigos, sobradões onde a miséria habita, ruas e ladeiras calçadas de pedras, fortes velhos, lugares históricos, e o cais, principalmente o cais, tudo pertence ao negro Antônio Balduíno. Só ele é dono da cidade porque só ele a conhece toda, sabe de todos os seus segredos, vagabundeou em todas as suas ruas, se meteu em quanto barulho, em quanto desastre aconteceu na sua cidade". (Jubiabá)

Um comentário:

  1. Parabéns, Rennata. Muito bom seu texto. Li essa semana Mar Morto. Já havia lido Jubiabá e Capitáes. Ganhei A Morte e a morte de Quincas Berro D'água. Espero ler toda sua obra, bem como a de João Ubaldo Ribeiro (Viva o Povo Brasileiro - excelente). Tenho lido, também, Stanislaw Ponte Preta/ Sérgio Porto (FEBEAPÁ, Tia Zulmira...).
    Savio

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